Valério Arcary: Oposição frontal ao governo Lula é ultra-esquerdismo

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Foto: Ricardo Stuckert/PR

Oposição frontal ao governo Lula é ultra-esquerdismo

A oposição frontal ao governo Lula, neste momento, não é vanguarda — é miopia. Enquanto o PSol oscila abaixo dos 5% e o bolsonarismo mantém 30% do país, a esquerda anticapitalista não pode se dar ao luxo de ser ‘a mais radical da sala’

“Quem corre atrás de duas lebres, uma e outra perderá”
(Provérbio popular português).

Por Valerio Arcary, em A Terra é Redonda

1.

A esquerda está dividida diante do governo Lula. Um campo minoritário radical e muito fragmentado, mas combativo de militância abnegada e despojada, defende que, apesar de tudo o que aconteceu nos últimos dez anos, é necessário ser oposição de esquerda ao governo Lula.

Mesmo considerando a estreita vitória eleitoral de Lula em 2022, a vitória da extrema direita nas eleições municipais de 2024, a eleição de Javier Milei e Donald Trump, e a permanência de um apoio de massas ao bolsonarismo.

Nessa chave “super-bolchevique” polemiza ferozmente contra as correntes revolucionárias que insistem que a melhor tática deve ser a independência, apoiando as medidas progressivas e justas, e criticando as medidas reacionárias e impopulares.

Mas não é verdade que há somente dois caminhos: apoio incondicional ou oposição irredutível ao governo Lula.

No repertório da esquerda marxista existem outras táticas. Entre o recuo constante e a ofensiva permanente existem outros movimentos para ganhar tempo sem ceder posições. Quando não estamos em uma situação revolucionária nunca é “tudo ou nada”. Há a necessidade de táticas que fazem mediações.

Existe o espaço e o tempo para manobras que permitam acumular forças. Infelizmente, o governo abraçou a estratégia de buscar a governabilidade “a frio”, custe o que custar, “risco zero”.

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O que pode ser fatal no que está por vir. O enfraquecimento do governo Lula nos deixa diante do perigo do abismo de uma derrota avassaladora em 2026, pior até que em 2018.

Mas ainda há tempo, se o governo fizer um giro à esquerda. Não depende da esquerda combativa que este giro venha a ser feito, porque não temos força bastante. Mas pressionar por um giro à esquerda não é o mesmo que exigir de Lula que “faça a revolução”. Isso seria ultimatismo.

Um giro à esquerda é o caminho apontado pelo plebiscito popular. Essa é a tática pela qual vale a pena a lutar. Não é uma tática original, sequer inusitada. Não é uma “invenção” brasileira.

Respeitadas as enormes diferenças da analogia, trata-se de fazer exigências ao governo Lula como Vladímir Lênin defendeu que o bolchevismo fizesse ao governo provisória liderado pelos esseristas e mencheviques em abril de 1917, para ganhar tempo.

A diferença é que tudo na conjuntura brasileira é mais difícil e, sobretudo, muito mais lento. Não há a pressão da guerra, os nossos Kornilov’s já tentaram o golpe, e o desfecho da medição de forças será no terreno eleitoral. Mas o principal é que não estamos em uma situação revolucionária.

2.

Mais difícil e lento porque ainda não foi revertida a situação reacionária aberta, por variados fatores. Evidentemente o governo Lula não é inocente neste processo, tem muitas responsabilidades. A relação de forças poderia ter evoluído mais favoravelmente, se Lula e a maioria da direção do PT tivessem disposição de correr mais riscos.

Existiram oportunidades perdidas: depois da derrota da semi-insurreição golpista de 8 de janeiro em 2023, por exemplo.

Temos exemplos recentes na Colômbia pela iniciativa de Gustavo Petro, que apoiou até um chamado à greve geral. Mas as vacilações e capitulações do governo Lula, por mais graves que sejam, não são o bastante para legitimar uma estratégia voluntarista.

Uma tática política não pode ser expressão de desejo. Não estamos às vésperas de um novo junho de 2013. Não haverá explosão social pela esquerda contra o governo Lula. Não há no horizonte senão a possibilidade de reeleição de Lula ou de retorno da extrema direita ao poder.

A aposta na ocupação de um espaço de crítica revolucionária aos limites do lulismo é um projeto irrealista que despreza a bússola de classe. Uma tática aventureira não é responsável.

Princípios não são o mesmo que um programa. Os princípios foram estabelecidos pelas lições graníticas da história da luta socialista através de gerações.

O programa não é igual a uma estratégia. O programa responde a uma avaliação das tarefas necessárias em função de uma análise da situação do país. A estratégia se formula em função de uma perspectiva de luta pelo poder. A estratégia não se resume a uma tática.

As táticas mudam em função das conjunturas. A política não é indiferente ao relógio da luta de classes. Nem tudo é possível. Sem um cálculo do que é possível tudo é somente vontade. Sem vontade revolucionária não há paixão política. Mas sem avaliação lúcida todo voluntarismo é estéril.

Os que defendem a necessidade de construir uma oposição frontal esgrimem três argumentos centrais:

(a) o governo Lula é um governo burguês e, se abraçamos uma estratégia revolucionária, a única tática consequente é a crítica implacável de suas capitulações às pressões da classe dominante, como o recente contingenciamento de mais de R$30 bilhões do orçamento para atingir a meta déficit zero do arcabouço fiscal, e a denúncia impiedosa de suas rendições, como o próximo leilão que a Petrobrás prepara, inclusive para a prospecção de petróleo na margem equatorial às vésperas da COP-30;

(b) a única forma de conter o apoio à oposição de extrema direita, que ocupa o espaço de oposição com um discurso radical contra o governo é uma agitação radical antissistema;

(c) o papel da esquerda anticapitalista é construir mobilizações de massas contra o governo, e não devemos nos apoiar nas medidas progressivas para ir mais além.

Estes três argumentos são errados porque ignoram as condições objetivas, ou seja, a força de uma realidade condicionada por fatores que independem da nossa vontade.

3.

É verdade que o governo está à deriva, cedendo às pressões da classe dominante:

(i) Gabriel Galípolo elevou a taxa de juros para diminuir a demanda, reduzir os custos produtivos pressionados por uma situação de “pleno emprego” técnico, e recuou da elevação do IOF em poucas horas;

(ii) o governo não assume a luta política pelo fim da escala 6×1, a agitação da defesa de imposto sobre os super-ricos com renda superior a R$50.000,00 por mês, silenciou diante da campanha contra a Anistia dos golpistas.

Mas a realidade é cruel. Apesar da provável condenação de Jair Bolsonaro e seus cúmplices, a oposição neofascista dirige um núcleo duro de algo próximo a 15% e influencia, pelo menos, 30% do país.

Não precisa de mais para arrastar uma maioria nas eleições de 2026, dependendo do que vai acontecer em um ano e meio. O principal partido à esquerda do PT e do lulismo é o PSol e influencia menos de 5%. Além disso, o nível de confiança e disposição de luta, até mesmo entre os setores mais avançados dos trabalhadores e da juventude é baixo.

A tática de independência diante do governo Lula é um cálculo que obedece a uma avaliação dos perigos que nos cercam. Independência não deve ser uma máscara seja para apoio envergonhado, ou para oposição dissimulada. A definição da tática deve responder a um juízo sobre o que está em jogo, uma avaliação da conjuntura e das relações sociais e políticas de força.

O mais importante entre todas as variáveis é que a classe trabalhadora e a juventude ainda não entraram em movimento. Infelizmente, até agora, dois anos e meio depois da vitória eleitoral de 2022 não se reverteu a situação defensiva de refluxo. Não há ascenso. Tudo o que há de mais grave ainda está em disputa, e é incerto.

Assim como há variados tipos de regimes políticos compatíveis com a preservação do capitalismo- desde ditaduras, ando por diferentes formas de democracias eleitorais, mais autoritárias ou menos, há, também, muitos tipos diferentes de governos burgueses. A tática política não pode ser sempre a mesma. O governo Lula é um governo burguês, porém, “anormal”.

Estamos diante de um governo burguês porque:

(a) o seu programa respeita os limites institucionais do regime que sustenta o capitalismo periférico brasileiro;

(b) a classe dominante está representada dentro do governo, através de Geraldo Alckmin, Simone Tebet, e o partido de Gilberto Kassab;

(c) o governo aceita as condições impostas pelo bloco do centrão;

(d) a aprovação do arcabouço fiscal garantiu uma relativa estabilidade na relação com a classe dominante, inclusive o agronegócio.

4.

Mas é um governo especialmente “anormal”, não só porque é liderado pelo PT, o maior partido de esquerda do país, e tem à sua frente Lula, a maior liderança popular da história. É uma anomalia porque os capitalistas, embora divididos entre os reacionários que querem disputar os rumos do governo, e os extremistas de direita que querem deslocá-lo, não podem reconhecer o governo como seu.

Ao mesmo tempo, a maioria dos trabalhadores e do povo de esquerda se identificam com a liderança de Lula. A classe dominante brasileira é a mais poderosa do mundo no hemisfério sul. Em 2016, não hesitou em apoiar um golpe institucional para derrubar o governo Dilma Rousseff, mesmo depois treze anos de ininterrupta concertação. Ficou claro no “laboratório da história” que não tem compromisso inquebrantável com a democracia liberal.

O apoio de uma fração burguesa a Lula no segundo turno de 2022 foi circunstancial, efêmero, condicional, um “acidente”.

A oposição de extrema-direita liderada pela corrente neofascista, embora na defensiva, está viva. A condenação de Jair Bolsonaro não deixará o bolsonarismo “acéfalo”: têm Tarcísio de Freitas e os familiares do clã. Ele pode ser substituído, porque, além do messianismo milenarista, há no país apoio político e ideológico ao programa da extrema direita.

Se as correntes revolucionárias tiverem como foco prioritário a denúncia do governo, a clássica tática do desgaste, colaboram com o seu enfraquecimento em uma conjuntura em que a única alternativa real na luta pelo poder é a extrema direita.

Jair Bolsonaro e seus monstros não perdem a oportunidade de reproduzir publicações contra o governo Lula vindas do nosso campo: “até na esquerda tem gente que diz o mesmo que nós”.

A esquerda radical não pode ser “inocente útil” do retorno ao poder do bolsonarismo. Quem não viu, no ado recente, o perigo do “inverno siberiano”, a derrota histórica, errou. Não há, por enquanto, uma situação revolucionária no horizonte. É justa a luta pelas reivindicações dos trabalhadores e da juventude, e toda a esquerda deve impulsioná-las, mas sem perder a bússola de classe.

Não se pode lutar contra duas forças político-sociais muito maiores do que a esquerda radical, ao mesmo tempo, na mesma intensidade.

O inimigo central é o neofascismo, e só pode ser derrotado com a Frente Única de Esquerda, inclusive com a esquerda moderada que lidera o governo Lula.

*Valerio Arcary é professor de história aposentado do IFSP. Autor, entre outros livros, de Ninguém disse que seria fácil (Boitempo). [https://amzn.to/3OWSRAc].

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